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Linha noturna

Âncora 1

Nos anos 1990, João Batista Melo escreveu um conto sob encomenda de um jornal que preparava uma edição especial de Natal. Para criar uma história com elementos do fantástico e de fantasia, ele se inspirou numa experiência isolada de um ônibus que, em algum ano daquela década, circulou por Belo Horizonte com enfeites natalinos. Agora, em 2018, várias capitais brasileiras receberam ônibus com iluminação especial de Natal, levando motoristas e trocadores vestidos como Papai Noel, exatamente como no conto de João Batista Melo. Comemorando a data, a circulação dos ônibus natalinos, e os dez anos de publicação de "O colecionador de sombras", o autor manterá neste site o conto disponível em sua versão integral até o Natal de 2018. Se você gostar da narrativa, adquira o livro e conheça as outras histórias de "O colecionador de sombras", onde o fantástico e o real se cruzam em qualquer esquina.

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Linha noturna

Aonde vais, vento? Para longe, para longe.

Além das chuvas, além dos limites do mundo.

Leva-me contigo, vento, bem alto no céu.

Richard Adams, A Longa Jornada

 

O ônibus fez a curva lentamente, como se deslizasse pelas enxurradas nas margens da rua. Roberto correu para fora da marquise, estendendo o braço entre os fios de chuva, já imaginando que, ainda distante do ponto, o motorista não o veria em meio à penumbra. Somente daí a meia hora passaria outro ônibus e o táxi estava descartado, já consultara os bolsos onde se aninhavam dois montículos de moedas. Queria chegar em casa antes da meia noite, entre outras razões porque Mariana se preocupava quando ele demorava para voltar da segunda jornada de trabalho. Permanecer parado na rua significava também tentar a sorte de encontrar um assaltante. Não acreditava que algum estivesse em serviço naquela noite e debaixo de um temporal intermitente. Mas era uma aposta que ele não tencionava fazer com o destino e por isso correu atabalhoado para se fazer visível ao motorista. Escorregou na calçada e tombou sentado metros antes do ponto.

Sentiu a dor percorrer-lhe as nádegas, mas mais que tudo perturbou-lhe a possibilidade de perder o ônibus. Ainda sentado no chão viu com um sentimento de frustração o veículo ir passando rumo a um bairro e a uma casa onde ele gostaria de estar naquele momento. Tentou se levantar, mas o sapato encharcado deslizou novamente e, por uma segunda vez, ele estatelou na calçada.

Assustou-se com o barulho dos freios e, mais ainda, quando a porta do ônibus se abriu bem à sua frente. Foi somente então que notou as luzes, fileiras delas contornando as quinas do ônibus, pulsando num extenso varal de estrelas, como se aquilo fosse a fachada de um shopping. Ainda fulminado pelas estrias de dor que faiscavam-lhe os músculos, viu descer os degraus a silhueta robusta e avermelhada de um Papai Noel.

- Machucou, doutor? - o Papai Noel estendeu a mão para ajudá-lo a levantar-se e depois a subir no ônibus. Roberto deixou-se levar sem resistência, mancou ligeiramente ao se apoiar numa das pernas, mas terminou por se acomodar no primeiro assento sem ajuda.

- Tudo no lugar, amigo? Quer que pare num hospital? Tem um logo ali na frente. - A pergunta veio do homem que se assentava detrás do volante e Roberto constatou que, também ele, vestia uma roupa e um gorro vermelho, debruados com uma lã esbranquiçada, e no rosto se espalhava um novelo de algodão na forma de uma barba. Questionando-se a respeito de estar num devaneio decorrente da queda, talvez batera com a cabeça, arriscou-se a responder:

- Está doendo um pouco, mas acho que passa logo.

O ônibus voltou a rodar. Lá fora, os edifícios brilhavam pichados de luzes coloridas. Por trás das gotas de chuva, as cintilações amarelas e brancas escorriam pelas paredes, contornavam as portas dos bancos, enchiam as vitrines das lojas. A umidade, pensava Roberto, era ao mesmo tempo um estímulo agradável aos olhos e um incômodo permanente para os corpos que precisavam circular pelas ruas da cidade. As roupas encharcadas como uma segunda e pesada pele, os pés resvalando nas enxurradas dos cantos da rua, a fonte intermitente dos pneus esmagando as poças. Ele se perguntava se as neves natalinas do outro hemisfério seriam também assim incômodas, apesar de sua plácida beleza nos retratos e nas ilustrações dos livros infantis.

Os dois noéis se entreolharam com um sorriso cúmplice. Na verdade, um deles, possivelmente o trocador não se vestia exatamente como um Papai Noel. O boné era mais cônico e comprido e sob o macacão acetinado, havia um colete opaco de algum tecido natural. Roberto assistia, mesmo adulto, a muitos desenhos animados para não imaginar de que o rapaz se fantasiava. Um gnomo. Ou um anão. Não se lembrava bem quem eram os ajudantes do velho símbolo do Natal.

- Ainda não tinha visto a gente? - o motorista perguntou.

- Não. É engraçado.

- Estamos assim desde o início de dezembro. Sempre pega esta linha?

- Eu moro perto do final.

- Os horários não devem ter coincidido - o trocador sugeriu.

- É boa idéia - Roberto comentou, ainda um pouco atrapalhado pela dor nas nádegas. - Ajuda as pessoas a lembrarem do Natal.

Por toda parte, as pessoas rareavam, os carros já transitavam em menor número. Ele se arrependia de não ter rumado antes para casa, mas essa decisão não lhe competia, dera sorte de negociar com o chefe e com colegas avessos ao Natal a saída antecipada do serviço de compensação. Trabalhara em velocidade ágil e o próprio banco colaborara, liberando a maior parte dos empregados notívagos mais cedo. Olhou o relógio. Onze horas. Mariana já devia ter colocado o vinho na geladeira, picado o provolone, pequenos luxos que os dois empregos, no banco estrangeiro e numa escola pública, permitiam-lhe em ocasiões especiais como naquela noite. Quando a erupção de fogos colorisse o céu da cidade, eles se abraçariam, juntos fariam uma oração e abririam a garrafa de vinho. Depois partilhariam seus sonhos para o futuro, cada vez menores ante a escassez de recursos para viabilizá-los. O fim do aluguel, o financiamento para a casa própria, algum dia um carro, idealizações de consumo que na verdade não eram o alvo principal de seus planos. Pensavam em mudar-se para o interior, deixar a violência da cidade, o estresse de mais de dez horas de trabalho. Mariana fora demitida um mês atrás quando a fábrica onde trabalhava como secretária encerrara as atividades. Ele mesmo mudara de trabalho duas vezes nos últimos três anos, ensaiando uma tendência que lhe assustava, pois em breve com quarenta anos começaria a ingressar numa faixa de idade na qual raleariam as oportunidades de emprego.

Roberto relanceou os demais passageiros. Lá atrás, um homem cochilava, a cabeça gingando feito uma bússola à medida que o ônibus virava para um lado ou para o outro. Mais à frente, uma mulher miúda e escura contemplava as ruas através da janela, olheiras emoldurando as íris sonolentas. Trabalhadores iguais a ele retornando para casa, exauridos demais para se empolgarem com aquela noite, ansiando apenas o descanso insubstituível do sono.

- Vocês não têm medo de assalto? Com esse ônibus chamando a atenção feito um disco voador?

O motorista riu, mas de repente sua feição se contraiu e ele apertou com força o volante. O barulho dos freios lembrou a Roberto de sua queda e ele esperou por algum impacto que não veio. Mal viu o carro vindo da outra rua no cruzamento varar o sinal fechado e cruzar a frente do ônibus. Imaginou que o motorista buzinaria irritado, mas este somente balançou a cabeça com uma expressão de lamento.

- Tem gente que não quer viver nem na noite de Natal.

O trocador atalhou.

- É preciso tomar mais cuidado nessas noites: natal, reveillon. carnaval. O pessoal enche a cara e sai por aí feito louco.

Ecoou no teto metálico o pipocar da chuva que, mais uma vez, se adensava. Afastando-se do centro, diminuiu o brilho das luzes decorativas e, por trás da cortina de água, divisava-se apenas o facho irregular dos postes e das casas com suas janelas e varandas.

- Mas o senhor perguntou pelos assaltantes - o motorista recuperou a tranqüilidade na voz.

- A cidade tá muito violenta. Nunca fui assaltado, mas acho que foi por sorte. Tenho colegas que já foram roubados de dia, de noite, no ônibus, no centro, no ponto.

O motorista diminuiu a marcha do ônibus e se inclinou para enxergar a rua em meio ao vaivém do limpador do pára-brisas.

- Não é melhor dar uma paradinha? - o trocador perguntou.

O motorista consultou o relógio.

- Já tá tarde. Vamos perder o horário.

- É melhor do que bater - o trocador insistiu.

Devagar, quase tateando em meio à escuridão molhada, o ônibus encostou na calçada e aguardou alguns minutos. No fundo, o homem acordou do cochilo e olhou em volta com cara de susto, quem sabe espantado pelo simples fato de ter dormido.

- Já chegamos no final? - ele indagou, preocupado.

- Não, a gente tá aqui por causa da chuva - o trocador explicou.

O silêncio pairou no ônibus por certo tempo. Roberto relaxou e fechou os olhos, sentindo que o incômodo da queda diminuía. Ele gostava do silêncio, essa entidade cada vez mais difícil de achar numa capital. Havia barulho no trabalho, na televisão, nos bares. Todos orbitavam em torno dos sons, como se neles buscassem uma justificativa a vida. Embora às vezes sonhasse com novos sons em sua casa, o emaranhado de gritos infantis de uma criança que não existia. Mariana não engravidava e na maior parte do tempo eles não se importavam com isso. O mundo soava-lhe cada vez mais absurdo e atroz. Que sentido colocar uma criança no meio desse caos, sem poder prover-lhe um futuro feliz e seguro?

- Mas o senhor perguntou pelo assalto. Talvez nossa segurança seja justamente chamarmos muita atenção. Nunca ouvi falar de Papais Noel sendo assaltados.

- Já ouviu falar de Papai Noel assaltante? - o trocador perguntou num tom divertido.

- Vi na Internet, lá no meu trabalho, sobre um Papai Noel na Europa que foi preso por brigar na rua - Roberto comentou.

- E tem aquele que pousou para a revista de mulher pelada - o trocador continuava com um tom jocoso.

- É. O senhor tem razão, amigo. - o motorista concluiu. - Não são mais bons tempos para um Papai Noel. Nada impede que sejamos assaltados. Ou até que sejamos assaltantes. Como cada vez mais se mata nos assaltos, pode até acontecer de um ladrão matar o Papai Noel. Ou o contrário.

O trocador virou-se para a janela.

- Isso seria ruim.

Lá atrás, o outro homem gritou.

- A chuva já diminuiu. Vamos embora que eu quero ir pra casa.

O motorista endireitou-se e virou a chave da ignição. Sorriu enquanto erguia um braço.

- Ho! Ho! Sim, senhor, seguimos em frente.

A chuva se extinguiu rapidamente e restou no ar uma umidade difusa. Roberto lembrou-se das contas que não pagara. Fugia sempre de entrar no cheque especial, mas vira e mexe acabava se descobrindo com um saldo negativo no final do mês e aí não restava hipótese, a não ser pagar os juros ao banco e torcer para que um milagre fizesse as despesas caírem ou as receitas aumentarem no mês seguinte. Dava aulas para o primeiro grau numa escola pública e costumava ficar olhando as crianças, a maioria filhas de trabalhadores de baixa renda e alguns até moradores de uma favela, e imaginando sobre o futuro que as esperaria num mundo com menos postos de trabalho, dominado por uma fria e cega globalização.

- Veja, senhor! - o motorista apontou algo que passava numa esquina. Um grupo de pivetes sob a marquise de uma loja fechada e escura. Eles acenderam algo parecido com uma fogueira e se deitaram ali ao lado, sob o manto de alguns trapos. Meninos iguais aos que trafegavam por todo o lado na cidade, sozinhos ou em bando, parando os passantes à cata de esmolas. Quem sabe um deles fosse o que tentou roubar-lhe uma carteira das mãos ao sair do banco. Que futuro também os esperava e que futuro esperava um mundo onde eles estariam à solta, adultos e sem perspectiva?

- É uma pena - Roberto comentou, sem saber ao certo o que dizia.

- Por que não paramos o ônibus e vamos levar alguma coisa pra eles? Um pão, um brinquedo, qualquer coisa?

O homem sentado no fundo esticou o pescoço, atento ao que o motorista dizia. Este, percebendo, respondeu-lhe olhando pelo retrovisor:

- Não fica preocupado. Não vou parar o ônibus. Daqui a pouco você tá em casa. Tá bom?

- Acho que se a gente descesse - disse Roberto - talvez a gente fosse assaltado.

- Pode ser que sim. Pode ser que não. Quem sabe, senhor. Como o senhor se chama mesmo?

- Roberto.

- Bom. Senhor Roberto, então.

- E vocês?

O motorista riu, divertindo-se com a pergunta, e respondeu num tom que não era sério nem brincalhão:

- Pode me chamar de Papai Noel. E esse é um dos meus anões.

O trocador deu uma gargalhada. Era um rapaz moreno, quase negro, dava para ver por trás dos flocos de algodão. Teria sido um de seus alunos na escola municipal? Pouco provável, não fazia ainda dez anos que começara a atuar no magistério para reforçar o salário do banco, e aquele trocador devia rondar a idade dos vinte.

Algo se movimentou no corredor. O homem se levantara e vinha caminhando resoluto pelo corredor. Quando ele esticou o braço, Roberto cogitou se mostraria alguma arma e anunciaria um assalto, mas ele somente falou com a voz um pouco menos irritada que nas vezes anteriores:

- Papai Noel, pára no próximo ponto. É lá que eu desço.

O homem deixou o ônibus e, dois pontos adiante, também a mulher saiu. Roberto seguiu mais alguns quarteirões sozinho com o motorista e o trocador.

- Você tem filhos, Roberto? - o motorista perguntou.

- Não.

- É casado.

- Sou.

- É feliz?

Roberto hesitou em responder. Pensou no trabalho cansativo, na falta de dinheiro, mas se lembrou da garrafa de vinho e do provolone, de Mariana e um milhão de abraços afetuosos e carinhos. E um turbilhão de imagens percorreu-lhe a mente antes que respondesse. Uma tarde na praia, uma carta da mãe que morava no interior, o obrigado de um aluno empurrado para a série seguinte. Seria muita pretensão responder positivamente, em especial por ser a felicidade sempre algo muito maior do que as coisas palpáveis ao redor.

- Acho que sim.

- Sou velho, Roberto. Dá pra ver por esta barba branca - ele deu um gargalhada, achando graça do próprio comentário, e rodou o volante para entrar em outra rua. - E acho que conheci seu pai.

- Meu pai?

- Em Corinto, não é?

- Sim, você é de lá?

- Já passei por ali. Seu pai trabalhava na padaria, lembro dele puxando a porta de ferro no final da noite. Acha que seu pai pensou no seu futuro antes de ter você?

- Isso não vale. Aqueles eram outros tempos, a vida no interior, sem as preocupações de hoje. Não conta.

O motorista deu de ombros e se concentrou na direção. Durante a conversa, Roberto nem percebera que o trocador se afastara para um banco mais distante e abrira um jornal.

- Página um: guerra no Oriente Médio: página dois: corrupção de deputado em Brasília; página três: rebelião em presídio em São Paulo; página quatro: bomba em igreja na Itália.

- Pára com isso, Anão - o motorista reclamou. - Chega de ler essas coisas. Hoje é Natal.

- Vamos esquecer delas, Papai Noel?

- Fecha esse jornal, Anão.

Lá de trás, o cobrador gritou para o motorista:

- Onde vamos passar a noite, Papai Noel?

- Rodando, claro, rodando.

- Vocês vão trabalhar até depois da meia noite?

- A noite inteira. Como rodamos todo o mês com este carro, a empresa ofereceu nos liberar nesta noite, mas nós preferimos ficar aqui. Afinal de contas, é na noite de Natal que Papai Noel tem de estar nas ruas.

- Ou no céu - o trocador largou o jornal e fez um movimento de vôo com as mãos. - Voando no seu trenó...

- Não tem trenó no Brasil - o motorista replicou.

Nas curvas, as lâmpadas do ônibus refletiam-se no espelho do asfalto molhado e Roberto se deixava divagar, sem pensamentos, somente olhando o faiscar das luzes, mil vaga-lumes circulando pelas ruas quase vazias da cidade. Na sua infância, havia uma árvore de Natal pequena, geralmente um arvoredo torto e colhido todos os anos do quintal da própria casa, sem semelhanças com os pinheiros das ilustrações dos cartões natalinos, o desfiar de orações intermináveis quando os dois ponteiros do relógio se encontravam e, sempre, um abraço caloroso dos pais e dos irmãos. A essência desses instantes o dominava em todos os Natais depois que crescera e, quando montava o simples presépio numa mesa da sala, era como se buscasse fisgar lá no passado a mesma sensação das noites da infância. Por isso gostava das luzes, das árvores, dos enfeites brilhantes que pendiam nas portas das casas.

Avistou o ponto onde desceria e pediu ao motorista para estacionar. O trocador se levantou e veio correndo até junto dele, a mão estendida:

- A passagem, você esqueceu de pagar.

Encabulado, Roberto enfiou a mão no bolso para pegar as moedas. Apoiou-se na perna para confirmar que andaria sem maiores problemas, exceto um tênue e difuso repuxão no músculo das nádegas. Agradeceu e desejou feliz Natal ao motorista e o trocador, apertando-lhe as mãos. Quando pisou no último degrau, o motorista o chamou:

- Não leve a mal a pergunta, mas se pudesse fazer um pedido ao Papai Noel o que iria querer?

Roberto sorriu, surpreendido pela pergunta, e abriu as mãos num gesto de dúvida.

- Pedido, como o das crianças? Acho que eu teria que ter mandado uma carta para o Papai Noel antes do Natal. Não é assim que funciona?

- Ora, vamos, é só uma pergunta. O que você pediria ao Papai Noel? Um carro, uma casa?

O trocador debruçado na barra de apoio do primeiro banco, esperava com os olhos atentos.

- Sei lá... talvez um... um futuro.

O trocador e o motorista trocaram olhares.

- Um futuro?

- Pra quem? Pra você? Pro mundo?

- Sei lá, só um futuro. Você que perguntou.

O motorista se endireitou na cadeira, segurou o volante com as duas mãos, e pisou no acelerador, o ônibus retido pelo outro pé que apertava a embreagem.

- É isso aí, amigo. Ho! Ho! Feliz Natal para todos!

Roberto terminou de descer e acenou. Caminhou os dois quarteirões que o separavam de casa. Inconscientemente, olhava ao redor temendo a aproximação de algum bandido. Estranhos aqueles dois no ônibus. Pareciam estar se divertindo com o papel representado a ponto de dispensarem a folga na noite de Natal. Provavelmente não tinham família e aí pouco importava circularem pela noite filosofando entre si e com os passageiros. Procurou no bolso a chave de casa e abriu a porta. Mariana não colocara o queijo e o vinho sobre a mesa. Ela o esperava diante da televisão e, por suas reações, absolutamente séria diante de um programa humorístico, Roberto deduziu que ela não via nada do que se passava na tela.

- Algum problema? - ele perguntou se assentando ao seu lado e dando-lhe um beijo no rosto.

Ela se aninhou em seu peito e contou:

- Estou esperando um bebê.

Roberto deveria tê-la recolhido em seus braços e confessado-lhe a imensa felicidade que atravessou todo seu corpo, muito mais forte que a dor de minutos atrás. Mas ao invés disso ele se levantou e caminhou até a janela dos fundos da casa, de onde se avistava a rua paralela, puxou o vidro e esticou a cabeça para fora a fim de ver melhor por trás da neblina difusa que a chuva deixara em seu rastro. Pouco depois, conseguiu ver o que procurava: um retângulo de lâmpadas faiscantes seguia devagar pela rua silenciosa. Forçando os ouvidos, ele descortinou também algo que estivera no fundo de sua audição durante toda a viagem, mas que somente agora tocava-lhe os sentidos com a limpidez necessária para ser compreendido: o som de sinos. Badalos repicavam todo o tempo misturados ao barulho do motor, um carrilhão tinindo nos encaixes das rodas, no painel de controle, nos giros da roleta. Sinos e mais sinos, enchendo agora o ar como os trinados de um bando de passarinhos.

Apesar da distância, Roberto delineou com clareza o vulto vermelho do motorista junto ao volante, a cabeça voltada na direção de sua casa, o braço levantado numa espécie de adeus. O ônibus virou a esquina e mergulhou na longa avenida que deixava o bairro rumo ao centro, misturou-se aos faroletes dos carros que trafegavam em ambas as direções. Roberto sentiu a mão de Mariana fechando-se em torno de seu braço, o olhar dela buscando lá fora o motivo de sua atenção. Sem conseguir dizer uma palavra, ele apontou o ônibus cheio de luzes que ia sumindo na cidade cada vez mais escura.

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